23 de março de 2012

Visita a Casa do Xana (Alexandre Esgaio)


Onde Moram as Casas
Texto Carla Maia de Almeida
Ilustração Alexandre Esgaio
Edição Caminho


Há janelas neste livro, mas olham mais para dentro que para fora. A autora começa por dizer: “As pessoas moram nas casas, mas o contrário também é verdade. As casas moram nas pessoas.” Tem razão. Depois, entra sem cerimónia, mas com delicadeza, nas “assoalhadas” de cada um de nós: coração-cozinha; sonho-sótão; cave-medo. Compara abraços a grandes salões de festa e aconselha a “bater à porta”, mesmo perante os que “são como quartos muito bem arrumados”. Um passeio poético em queCarla Maia de Almeida vai bem acompanhada. O ilustrador Alexandre Esgaio revela-se um belo “decorador” de interiores e de exteriores... Numa expressão colorida, mas não berrante, cria imagens inesperadas com pormenores bem-humorados.Pressente-se boa vizinhança

Conheça o blogue do ilustrador aqui 

21 de março de 2012

Eugénio de Andrade - As palavras Interditas




As Palavras InterditasOs navios existem, e existe o teu rosto 
encostado ao rosto dos navios. 
Sem nenhum destino flutuam nas cidades, 
partem no vento, regressam nos rios. 

Na areia branca, onde o tempo começa, 
uma criança passa de costas para o mar. 
Anoitece. Não há dúvida, anoitece. 
É preciso partir, é preciso ficar. 

Os hospitais cobrem-se de cinza. 
Ondas de sombra quebram nas esquinas. 
Amo-te... E entram pela janela 
as primeiras luzes das colinas. 

As palavras que te envio são interditas 
até, meu amor, pelo halo das searas; 
se alguma regressasse, nem já reconhecia 
o teu nome nas suas curvas claras. 

Dói-me esta água, este ar que se respira, 
dói-me esta solidão de pedra escura, 
estas mãos nocturnas onde aperto 
os meus dias quebrados na cintura. 

E a noite cresce apaixonadamente. 
Nas suas margens nuas, desoladas, 
cada homem tem apenas para dar 
um horizonte de cidades bombardeadas. 

Eugénio de Andrade, in “Poesia e Prosa” 

Mário Viegas diz Jorge de Sena





Não, não, não subscrevo, não assino

Que a pouco e pouco tudo volte ao de antes,
como se golpes, contra-golpes, intentonas
(ou inventonas – armadilhas postas
da esquerda prá direita ou desta para aquela)
não fossem mais que preparar caminho
a parlamentos e governos queiram secretamente
pôr ramos de cravos
e não de rosas fatimosas mas de cravos
na tumba do profeta em Santa Comba,
enquanto pra salvar-se a inconomia
os empresários (ai que lindo termo,
com tudo o que de teatro nele soa)
irão voltar testas de ferro do
capitalismo que se usou de Portugal
para mão-de-obra barata dentro ou fora.

Tiveram todos culpa no chegar-se a isto:
infantilmente doentes de esquerdismo
e como sempre lendo nas cartilhas
que escritas fedem doutras realidades,
incompetentes competiram em
forçar revoluções, tomar poderes e tudo
numa ânsia de cadeiras, microfones,
a terra do vizinho, a casa dos ausentes,
e em moer do povo a paciência e os olhos
num exibir-se de redondas mesas
em televisas barbas de falácia imensa.

E todos eram povo e em nome dele falavam,
ou escreviam intragáveis prosas
em que o calão barato e as ideias caras
se misturavam sem clareza alguma
(no fim das contas estilo Estado Novo
apenas traduzido num calão de insulto
ao gosto e á inteligência dos ouvintes-povo).

Prendeu-se gente a todos os pretextos,
conforme o vento, a raiva ou a denúncia,
ou simplesmente (ó manes de outro tempo)
o abocanhar patriótico dos tachos.

Paralisou-se a vida do país no engano
de que os trabalhadores não devem trabalhar
senão em agitar-se em demandar salários
a que tinham direito mas sem que
houvesse produção com que pagá-los.

Até que um dia, à beira de uma guerra
civil (palavra cómica pois quedo lume os militares
seriam quem tirava
para os civis a castanhinha assada),
tudo sumiu num aborto caricato
em que quase sem sangue ou risco de infecção
parteiras clandestinas apararam
no balde da cozinha um feto inexistente:
traindo-se uns aos outros ninguém tinha
(ó machos da porrada e do cacete)
realmente posto o membro na barriga
da pátria em perna aberta e lá deixado
semente que pegasse (o tempo todo
haviam-se exibido eufóricos de nus,
às Africas e às Europas de Oeste e Leste).

A isto se chegou. Foi criminoso?

Nem sequer isso, ou mais do que isso um guião
do filme que as direitas desejavam,
em que como num jogo de xadrez a esquerda
iria dando passo a passo as peças todas.

É tarde e não adianta que se diga ainda
(como antes já se disse) que o povo resistiu
a ser iluminado, esclarecido, e feito
a enfiar contente a roupa já talhada.

Se muita gente reagiu violenta
(com as direitas assoprando as brasas)
é porque as lutas intestinas (termo
extremamente adequado ao caso)
dos esquerdismos competindo o permitiram.

Também não vale a pena que se lave
a roupa suja em público: já houve
suficiente lavar que todavia
(curioso ponto) nunca mostrou inteira
quanta camisa à Salazar ou cueca de Caetano
usada foi por tanto entusiasta,
devotamente adepto de continuar ao sol
(há conversões honestas, sim, ai quantos santos
não foram antes grandes pecadores).

E que fazer agora? Choro e lágrimas?

Meter avestruzmente a cabeça na areia?

Pactuar na supremíssima conversa
de conciliar a casa lusitana,
com todos aos beijinhos e aos abraços?

Ir ao jantar de gala em que o Caetano,
o Spínola, o Vasco, o Otelo e os outros,
hão-de tocar seus copos de champanhe?

Ir já fazendo a mala para exílios?

Ou preparar uma bagagem mínima
para voltar a ser-se clandestino usando
a técnica do mártir (tão trágica porque
permite a demissão de agir-se à luz do mundo,
e de intervir directamente em tudo)?

Mas como é clandestina tanta gente
que toda a gente sabe quem já seja?

Só há uma saída: a confissão
(honesta ou calculada) de que erraram todos,
e o esforço de mostrar ao povo (que
mais assustaram que educaram sempre)
quão tudo perde se vos perde a vós.

Revolução havia que fazer.

Conquistas há que não pode deixar-se
que se dissolvam no ar tecnocratado oportunismo
à espreita de eleições.

Pode bem ser que a esquerda ainda as ganhe,
ou pode ser que as perca. Em qualquer caso,
que ao povo seja dito de uma vez
como nas suas mãos o seu destino está
e não no das sereias bem cantantes
(desde a mais alta antiguidade é conhecido
que essas senhoras são reaccionárias,
com profissão de atrair ao naufrágio o navegante intrépido).

Que a esquerda
nem grite, que está rouca, nem invente
as serenatas para que não tem jeito.

Mas firme avance, e reate os laços rotos
entre ela mesma e o povo (que não é
aqueles milhares de fiéis que se transportam
de camioneta de um lugar pró outro).

Democracia é isso: uma arte do diálogo
mesmo entre surdos. Socialismo à força
em que a democracia se realiza.

Há muito socialismo: a gente sabe,
e quem mais goste de uns que dos outros.

É tarde já para tratar do caso: agora
importa uma só coisa – defender
uma revolução que ainda não houve,
como as conquistas que chegou a haver
(mas ajustando-as francamente à lei
de uma equidade justa, rechaçando
o quanto de loucuras se incitaram
em nome de um poder que ninguém tinha).

E vamos ao que importa: refazer
um Portugal possível em que o povo
realmente mande sem que o só manejem,
e sem que a escravidão volte à socapa
entre a delícia de pagar uma hipoteca
da casa nunca nossa e o prazer
de ter um frigorifico e automóveis dois.

Ah, povo, povo, quanto te enganaram
sonhando os sonhos que desaprenderas!

E quanto te assustaram uns e outros,
com esses sonhos e com o medo deles!

E vós, políticos de ouro de lei ou borra,
guardai no bolso imagens de outras Franças,
ou de Germânias, Rússias, Cubas, outras Chinas,
ou de Estados Unidos que não crêem
que latinada hispânica mereça
mais que caudilhos com contas na Suíça.

Tomai nas vossas mãos o Portugal que tendes
tão dividido entre si mesmo!

Adiante!

Com tacto e com fineza. E com esperança.

E com um perdão que há que pedir ao povo.

E vós, ó militares, para o quartel
(sem que, no entanto, vos deixeis purgar
ao ponto de não serdes o que deveis ser:
garantes de uma ordem democrática
em que a direita não consiga nunca
ditar uma ordem sem democracia).

E tu, canção-mensagem, vai e diz
o que disseste a quem quiser ouvir-te.

E se os puristas da poesia te acusarem
de seres discursiva e não galante
em graças de invenção e de linguagem,
manda-os àquela parte.

Não é tempo para tratar de poéticas agora.

Jorge de Sena, Fevereiro 1976.
 

19 de março de 2012

"Dificuldade de Governar", de Bertolt Brecht


"Dificuldade de governar", de Bertolt Brecht
Por Francisco Rosa.

E desenho digital de António Jorge Gonçalves.

www.facebook.com/clubedapalavra

Excerto do 17º episódio da terceira temporada do Clube da Palavra (Canal Q).
Acompanhe todos os Sábados às 22h35 

Dificuldade de governar
1 

Todos os dias os ministros dizem ao povo 
Como é difícil governar. Sem os ministros 
O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima. 
Nem um pedaço de carvão sairia das minas 
Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda 
Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra 
Nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer o sol 
Sem a autorização do Führer? 
Não é nada provável e se o fosse 
Ele nasceria por certo fora do lugar. 


E também difícil, ao que nos é dito, 
Dirigir uma fábrica. Sem o patrão 
As paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam de ferrugem. 
Se algures fizessem um arado 
Ele nunca chegaria ao campo sem 
As palavras avisadas do industrial aos camponeses: quem, 
De outro modo, poderia falar-lhes na existência de arados? E que 
Seria da propriedade rural sem o proprietário rural? 
Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas. 


Se governar fosse fácil 
Não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos como o do Führer. 
Se o operário soubesse usar a sua máquina 
E se o camponês soubesse distinguir um campo de uma forma para tortas 
Não haveria necessidade de patrões nem de proprietários. 
E só porque toda a gente é tão estúpida 
Que há necessidade de alguns tão inteligentes. 


Ou será que 
Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira 
São coisas que custam a aprender?

14 de março de 2012

Há 132 anos nascia Albert Einstein.

"O mundo é um lugar perigoso de se viver, não por causa daqueles que fazem o mal, mas sim por causa daqueles que observam e deixam o mal acontecer."




Aos 66 anos, Einstein fez uma breve pausa recapitulando o trajecto da sua vida: "Havia este mundo enorme, que existe independentemente de nós, seres humanos, que permanece diante de nós um enigma gigantesco e eterno, acessível, pelo menos em parte, à nossa inspecção e ao nosso pensamento. A contemplação deste mundo acenava como uma libertação. O caminho para este paraíso não era tão confortável nem tão atraente como o caminho para o Paraíso religioso; mas mostrou-se digno de confiança e nunca me arrependi de o ter escolhido."

8 de março de 2012

The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore



Uma excelente curta de animação que retrata o fascinante mundo dos livros e da leitura...

8 de Março - Dia Internacional da Mulher





Dia Internacional da Mulher

PORQUÊ O DIA 8 DE MARÇO 



Neste dia, do ano de 1857, as operárias têxteis de uma fábrica de Nova Iorque entraram em greve, ocupando a fábrica, para reivindicarem a redução de um horário de mais de 16 horas por dia para 10 horas. Estas operárias que, nas suas 16 horas, recebiam menos de um terço do salário dos homens, foram fechadas na fábrica onde, entretanto, se declarara um incêndio, e cerca de 130 mulheres morreram queimadas. Em 1910, numa conferência internacional de mulheres realizada na Dinamarca, foi decidido, em homenagem àquelas mulheres, comemorar o 8 de Março como "Dia Internacional da Mulher". De então para cá o movimento a favor da emancipação da mulher tem tomado forma, tanto em Portugal como no resto do Mundo.


Recordar este dia é lutar pela igualdade de géneros, e também por uma sociedade mais livre, mais solidária e justa...

5 de março de 2012

90º Aniversário de Pier Paolo Pasolini




REQUIEM PARA PIER PAOLO PASOLINI

Eu pouco sei de ti mas este crime
torna a morte ainda mais insuportável.
Era novembro, devia fazer frio, mas tu
já nem o ar sentias, o próprio sexo
que sempre fora fonte agora apunhalado.
Um poeta, mesmo solar como tu, na terra
é pouca coisa: uma navalha, o rumor
de abril podem matá-lo – amanhece,
os primeiros autocarros já passaram,
as fábricas abrem os portões, os jornais
anunciam greves, repressão, dois mortos na
primeira
página, o sangue apodrece o brilhará
ao sol, se o sol vier, no meio das ervas.
O assassino, esse seguirá dia após dia
a insultar o amargo coração da vida;
no tribunal insinuará que respondera apenas
a uma agressão (moral) com outra agressão,
como se alguém ignorasse, excepto claro
os meretíssimos juízes, que as putas desta espécie
confundem moral com o próprio cu.
O roubo chega e sobra excelentíssimos senhores
como móbil de um crime que os fascistas,
e não só os de Salò, não se importariam de
assinar.
Sea qual for a razão, e muitas há,
que o Capital a Igreja e a Polícia
de mãos dadas estão sempre prontos a justificar,
Pier Paolo Pasolini está morto.
A farsa, a nojenta farsa, essa continua.

Novembro, 1975


Pier Paolo Pasolini (Março 1922 - Novembro 1975) foi um poeta, novelista e cineasta italiano. Filho de um oficial fascista e de uma mãe anti-Mussolini, Pasolini passou grande parte da sua infância em Casarsa della Delizia, a nordeste de Veneza. Em 1937 regressa à sua cidade natal, onde estuda história e literatura na Universidade de Bolonha. Publica, nesta altura, artigos na revista estudantil Architrave e começa a escrever poemas, editando a sua primeira colectânea, em edição de autor, no ano de 1942 (Poesia a Carsasa). Ainda jovem filia-se no Partido Comunista de onde viria a ser expulso por alegada homossexualidade, mas manter-se-á fiel à ideologia comunista até à sua morte.
A partir de 1949, a actividade literária de Pasolini intensifica-se, escreve poemas e romances, trazendo a publicação das duas primeiras partes de uma trilogia, Ragazzi di Vita (1955) e Una Vita Violenta (1959), a sua consagração enquanto escritor.
Foi, e ainda é, considerado um dos mais importantes e polémicos escritores italianos do século XX, tendo construído uma obra que reflecte as suas preocupações sociais e os seus ideais políticos. Mas a fama internacional de Pasolini deve-se sobretudo à sua carreira cinematográfica. Iniciou-se como actor na década de 50 e estreou-se como realizador em 1961 com Accatone, uma adaptação do seu romance Una Vita Violenta. Os seus filmes abordam temas tão opostos como a religião (Il Vangelo secondo Matteo, 1964) e a sexualidade (Il Fiore delle Mille e une Notte, 1973), apresentando muitas vezes perspectivas controversas que nem sempre foram bem aceites pelo público.
Autor de poemas, romances, ensaios, argumentos, realizador e teórico de cinema, Pasolini foi uma figura polémica do século XX italiano. A sua morte violenta, em 1975, é vista por alguns como um assassinato por motivos políticos.

Fonte: www.assirio.com

Não, Não assino, Não subscrevo - Jorge de Sena



Não, Não assino, Não subscrevo.

Voz de Mário Viegas
Poema de Jorge de Sena

Não, não, não subscrevo, não assino ...

Não, não, não subscrevo, não assino
que a pouco e pouco tudo volte ao de antes,
como se golpes, contra-golpes, intentonas
(ou inventonas - armadilhas postas
da esquerda prá direita ou desta para aquela)
não fossem mais que preparar caminho
a parlamentos e governos que
irão secretamente pôr ramos de cravos
e não de rosas fatimosas mas de cravos
na tumba do profeta em Santa Comba,
enquanto pra salvar-se a inconomia
os empresários (ai que lindo termo,
com tudo o que de teatro nele soa)
irão voltar testas de ferro do
capitalismo que se usou de Portugal
para mão-de-obra barata dentro ou fora.
Tiveram todos culpa no chegar-se a isto:
infantilmente doentes de esquerdismo
e como sempre lendo nas cartilhas
que escritas fedem doutras realidades,
incompetentes competiram em
forçar revoluções, tomar poderes e tudo
numa ânsia de cadeiras, microfones,
a terra do vizinho, a casa dos ausentes,
e em moer do povo a paciência e os olhos
num exibir-se de redondas mesas
em televisas barbas de falácia imensa.
E todos eram povo e em nome del' falavam,
ou escreviam intragáveis prosas
em que o calão barato e as ideias caras
se misturavam sem clareza alguma
(no fim das contas estilo Estado Novo
apenas traduzido num calão de insulto
ao gosto e à inteligência dos ouvintes-povo).
Prendeu-se gente a todos os pretextos,
conforme o vento, a raiva ou a denúncia,
ou simplesmente (ó manes de outro tempo)
o abocanhar patriótico dos tachos.
Paralisou-se a vida do país no engano
de que os trabalhadores não devem trabalhar
senão em agitar-se em demandar salários
a que tinham direito mas sem que
houvesse produção com que pagá-los.
Até que um dia, à beira de uma guerra
civil (palavra cómica pois que
do lume os militares seriam quem tirava
para os civis a castanhinha assada),
tudo sumiu num aborto caricato
em que quase sem sangue ou risco de infecção
parteiras clandestinas apararam
no balde da cozinha um feto inexistente:
traindo-se uns aos outros ninguém tinha
(ó machos da porrada e do cacete)
realmente posto o membro na barriga
da pátria em perna aberta e lá deixado
semente que pegasse (o tempo todo
haviam-se exibido eufóricos de nus,
às Áfricas e às Europas de Oeste e Leste).
A isto se chegou. Foi criminoso?

Nem sequer isso, ou mais do que isso um guião
do filme que as direitas desejavam,
em que como num jogo de xadrez a esquerda
iria dando passo a passo as peças todas.
É tarde e não adianta que se diga ainda
(como antes já se disse) que o povo resistiu
a ser iluminado, esclarecido, e feito
a enfiar contente a roupa já talhada.
Se muita gente reagiu violenta
(com as direitas assoprando as brasas)
é porque as lutas intestinas (termo
extremamente adequado ao caso)
dos esquerdismos competindo o permitiram.

Também não vale a pena que se lave
a roupa suja em público: já houve
suficiente lavar que todavia
(curioso ponto) nunca mostrou inteira
quanta camisa à Salazar ou cueca de Caetano
usada foi por tanto entusiasta,
devotamente adepto de continuar ao sol
(há conversões honestas, sim, ai quantos santos
não foram antes grandes pecadores).
E que fazer agora? Choro e lágrimas?
Meter avestruzmente a cabeça na areia?
Pactuar na supremíssima conversa
de conciliar a casa lusitana,
com todos aos beijinhos e aos abraços?
Ir ao jantar de gala em que o Caetano,
o Spínola, o Vasco, o Otelo e os outros,
hão-de tocar seus copos de champanhe?
Ir já fazendo a mala para exílios?
Ou preparar uma bagagem mínima
para voltar a ser-se clandestino usando
a técnica do mártir (tão trágica porque
permite a demissão de agir-se à luz do mundo,
e de intervir directamente em tudo)?
Mas como é clandestina tanta gente
que toda a gente sabe quem já seja?



Só há uma saída: a confissão
(honesta ou calculada) de que erraram todos,
e o esforço de mostrar ao povo (que
mais assustaram que educaram sempre)
quão tudo perde se vos perde a vós.
Revolução havia que fazer.
Conquistas há que não pode deixar-se
que se dissolvam no ar tecnocrata
do oportunismo à espreita de eleições.
Pode bem ser que a esquerda ainda as ganhe,
ou pode ser que as perca. Em qualquer caso,
que ao povo seja dito de uma vez
como nas suas mãos o seu destino está
e não no das sereias bem cantantes
(desde a mais alta antiguidade é conhecido
que essas senhoras são reaccionárias,
com profissão de atrair ao naufrágio
o navegante intrépido). Que a esquerda
nem grite, que está rouca, nem invente
as serenatas para que não tem jeito.
Mas firme avance, e reate os laços rotos
entre ela mesma e o povo (que não é
aqueles milhares de fiéis que se transportam
de camioneta de um lugar pró outro).
Democracia é isso: uma arte do diálogo
mesmo entre surdos. Socialismo à força
em que a democracia se realiza.
Há muito socialismo: a gente sabe,
e quem mais goste de uns que dos outros.
É tarde já para tratar do caso: agora
importa uma só coisa - defender
uma revolução que ainda não houve,
como as conquistas que chegou a haver
(mas ajustando-as francamente à lei
de uma equidade justa, rechaçando
o quanto de loucuras se incitaram
em nome de um poder que ninguém tinha).
E vamos ao que importa: refazer
um Portugal possível em que o povo
realmente mande sem que o só manejem,
e sem que a escravidão volte à socapa
entre a delícia de pagar uma hipoteca
da casa nunca nossa e o prazer
de ter um frigorifico e automóveis dois.
Ah, povo, povo, quanto te enganaram
sonhando os sonhos que desaprenderas!
E quanto te assustaram uns e outros,
com esses sonhos e com o medo deles!
E vós, políticos de ouro de lei ou borra,
guardai no bolso imagens de outras Franças,
ou de Germânias, Rússias, Cubas, outras Chinas,
ou de Estados Unidos que não crêem
que latinada hispânica mereça
mais que caudilhos com contas na Suíça.
Tomai nas vossas mãos o Portugal que tendes
tão dividido entre si mesmo. Adiante.
Com tacto e com fineza. E com esperança.
E com um perdão que há que pedir ao povo.
E vós, ó militares, para o quartel
(sem que, no entanto, vos deixeis purgar
ao ponto de não serdes o que deveis ser:
garantes de uma ordem democrática
em que a direita não consiga nunca
ditar uma ordem sem democracia).
E tu, canção-mensagem, vai e diz
o que disseste a quem quiser ouvir-te.
E se os puristas da poesia te acusarem
de seres discursiva e não galante
em graças de invenção e de linguagem,
manda-os àquela parte. Não é tempo
para tratar de poéticas agora.